terça-feira, 28 de setembro de 2010

Fernando Pessoa é celebrado no Brasil com dicionário

A nota é de mais ou menos um mês atrás, mas vale muito à pena replicá-la. O texto e entrevista com o autor Fernando cabral Martins é do jornal O Globo:
 
Um dos escritores mais intrigantes da língua portuguesa, o poeta Fernando Pessoa (1888-1935) está sendo celebrado duplamente no Brasil: enquanto o Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, traz a mostra "Fernando Pessoa - Plural como o universo", uma obra monumental chega às livrarias: "Dicionário de Fernando Pessoa e do modernismo português" (Leya). Organizado por Fernando Cabral Martins, um dos maiores especialistas em modernismo português, o dicionário reuniu mais de 80 colaboradores, que produziram 600 verbetes sobre o escritor, sua obra e o movimento que ajudou a definir. Há ainda um filme sobre o poeta, a ser rodado em 2011, com roteiro e direção de Ruy Guerra. Em entrevista ao GLOBO por telefone, de Lisboa, Cabral Martins revela que há muito a ser descoberto sobre Pessoa: cerca de metade de sua produção permanece inédita.

O GLOBO: Há ainda muitos textos inéditos de Fernando Pessoa?
FERNANDO CABRAL MARTINS: Há muitos aspectos de Fernando Pessoa ainda não revelados. Só metade do que ele escreveu foi lido, trascrito e em parte publicado. Há um volume de contos policiais e uma grande produção de contos em geral aguardando edição dos estudiosos. São contos inacabados. O mesmo acontece com o teatro. A importância da prosa na obra de Pessoa era até pouco tempo atrás desconhecida. Antes ele era considerado um poeta. Hoje sabe-se do papel fundamental da narrativa em sua obra, ainda que seja fragmentária, sem começo, meio e fim, textos que não se enquadram nos gêneros literários tradicionais e lineares.

Fernando Pessoa via-se multifacetado e fragmentado como sua obra?
Nos últimos 15 anos da vida de Pessoa, há muitos testemunhos mostrando que os autores imaginários começam a invadir sua vida. Em alguns momentos ele é Álvaro de Campos, noutros Alberto Caeiro, ou Ricardo Reis. Os heterônimos começam como um artifício, no sentido de serem um objeto de arte, mas são criações de tal maneira fortes e intensas, sobretudo o Álvaro de Campos, que Pessoa acaba influenciando a si próprio, como se a criatura se tornasse maior que o criador. A personagem começa a fazer parte do cotidiano do escritor e a interferir em suas relações, como em seu namoro com Ophélia Queiroz, no qual Álvaro de Campos surge como uma terceira pessoa de forma desagradável para Ophélia.

Jovens poetas que procuravam os conselhos de Pessoa às vezes encontravam em seu lugar Álvaro de Campos, um personagem nada agradável, que bebia muito e com quem era difícil conviver. O aparecimento das figuras imaginárias na vida de Pessoa é bastante perigoso. Revela que há uma dimensão de loucura à espreita. Mas é evidente para mim que ele consegue manter o jogo que criou no limite da sanidade. Nossa unidade é imaginária, frágil, mudamos um pouco todos os dias. Portanto, o que Pessoa concebe ao criar heterônimos e ao tratar da temática de despersonalização e desdobramento do ser é uma linha de pesquisa literária em torno de uma realidade que é humana e universal. Em certos momentos, a coisa pode ter ido longe demais e Pessoa sentia-se um palco para suas invenções literárias, assim como algumas ficções contemporâneas como "Matrix" e "Avatar". Ele nunca deixou que os avatares tomassem o controle, que foi sempre dele, o pobre homem que passava o dia em seu quartinho a escrever.

Por que Fernando Pessoa é o ponto de partida e a referência central do dicionário?
Havia a dificuldade em determinar onde começa e acaba o modernismo português, saber os limites temporais e quais artistas deviam ser considerados como parte ou referências do movimento. Há muitas opiniões divergentes. A importância do movimento em Portugal é muito grande. Em termos relativos, é mais importante o modernismo em Portugal do que foi no Brasil. A empreitada só foi possível graças ao fato de haver em Portugal uma figura que sobreleva todas as outras em importância. Assim conseguimos coerência, colocando Pessoa como figura central. E há ainda uma sorte especial: quando Pessoa morre, em 1935, podemos dizer que o modernismo, se ainda existe, tem características muito diferentes de seu princípio.

Fiquei satisfeito ao descobrir que se centrasse a obra em Fernando Pessoa a tarefa de organizar o dicionário seria mais fácil. Para citar um exemplo de como pude fazer uma seleção, é essencial haver um verbete sobre Shakespeare. O escritor inglês é o grande modelo de Pessoa.

Então, Fernando Pessoa é o modernista por excelência?
Sim. Pessoa é a figura do século XX português mais importante dentro do panorama mundial.

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